sábado, 30 de janeiro de 2010

O TEMPO (parte 3)

Um exemplo de exegese absolutamente fora de contexto

Perto do fim do texto, o articulista assevera:

"Aliás, a Bíblia ensina a regeneração de tudo (Mt 19,28; Is 45,23; Rm 14,11)."

Isso eu chamo de exegese absolutamente fora de contexto. Senão vejamos:

Is 45,23: "diante de mim se dobrará todo o joelho, e por mim jurará toda a língua".

Rm 14,11: "todo joelho se dobrará diante de mim e toda língua dará glória [ou 'confessará] a Deus".

Mt 19,28: "vós, que me seguistes, vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel".

Paulo está escrevendo para todos os "cristãos" ou sua carta se dirige exclusivamente aos membros da
ekklesia de Roma? E, mais importante, em que contexto? Quando nós lemos todo o capítulo 14 da epístola aos Romanos, que é o procedimento exegético correto, percebemos que o apóstolo está admoestando seus confrades quanto ao fato de uns estarem julgando os outros dentro da comunidade e vice-versa. É esse contexto e esse direcionamento que o faz citar Isaías e nada, absolutamente nada, na passagem permite afirmar que ela aponta para toda a humanidade no futuro e, mais que isso, que os "demônios" foram pensados quando a citação bíblica foi feita por ele.

Da mesma forma, a fala profética de Isaías, só com muita boa vontade é que podemos incluir os "demônios" nela. Novamente, lendo o capítulo inteiro, fica evidente que nada nele permite inferir que os "demônios" também se dobrarão. Aliás, se esse fosse o caso, o dito profético os mencionaria explicitamente.

Em suma, "a Bíblia ensina a regeneração..." é uma simplificação grosseira. Mais certo seria dizer que,
versículos escolhidos fora de contexto de apenas três livros de toda a Bíblia cristã podem, numa exegese extremamente forçada, corroborar a opinião.

Por meio de versículos escolhidos a dedo e fora de contexto qualquer um pode afirmar que a Bíblia ensina isso ou aquilo. Desse jeito, até eu escreveria em jornais e revistas.

O TEMPO (parte 2)

É preciso trabalhar com as fontes honestamente

Continuando o artigo, o autor menciona que:

"Orígenes com sua tese da apocatástase ensinava que os demônios, no futuro, se regenariam, já vislumbrando que eles eram seres humanos".

Bem, em alguns de seus escritos, Orígenes se perguntava se seria possível os demônios se converterem à medida que "a maldade, uma vez livremente aceita, pode se tornar uma parte de sua natureza". (Cf. Origène
, Traité des Principes, I,6,3; p.203). Em uma carta enviada aos amigos de Alexandria, ele nega ter ensinado a salvação dos demônios (Cf. H. CROUZEL, Origène, Paris-Namur, Culture et Vérité-Lethielleux, 1985, p.337).

Ou seja, o que nós podemos afirmar, com toda a certeza, é que Orígenes pendia ora para um lado, ora para outro. Seria correto, eu pergunto, construir uma argumentação embasada em uma fala de um autor cristão da antiguidade, porque ela corrobora a nossa opinião, sem informar aos leitores que esse mesmo autor, em outros momentos, fazia declarações na direção oposta?

Assim, o que pensava Clemente, um autor cristão anterior a Orígenes, a respeito da purificação das almas (Cf.
Stromates, VII,12)? Cito Clemente apenas para termos a noção de que vários outros Pais da Igreja abraçavam outras ideias sobre o futuro das almas e, por extensão, dos chamados demônios. Ou seja, mencionar um autor, fazendo de conta que ele representa a maioria ou é o porta-voz da visão "oficial" da Igreja não me parece um bom procedimento metodológico.

É preciso manejar as fontes honestamente.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O TEMPO

Boa vontade só não basta

Li, num artigo, que "muitos teólogos, padres e pastores do século 20 não acreditavam na existência do demônio". Em seguida, o articulista comenta:

Hoje se sabe que demônios são os próprios espíritos humanos. Aliás, na época em que a Bíblia foi escrita, como já demonstrei em outras matérias desta coluna, a palavra grega “daimon” (plural “daimones”) significava alma ou espírito dum morto.

Bem, "hoje se sabe" é uma afirmação muito categórica. Não são todos os seres humanos na Terra que sabem ou aceitam isso. Pergunte a um cristão do tipo neopentecostal se o "demônio" que atormenta a vida das pessoas é a alma de alguém já morto e ele, certamente, responderá que não. Os demônios são, segundo a visão de muitos, seres criados à parte para "infernizar" os filhos de Deus.

Na frase seguinte, outra declaração questionável: "na época em que a Bíblia foi escrita, (...) a palavra grega 'daimon' (...) significava alma ou espírito dum morto."

Em que época a Bíblia foi escrita? Seria mais adequado dizer, talvez, a época em que os textos bíblicos foram compilados... A Bíblia foi "escrita" durante vários séculos de maneira que situar sua redação numa época precisa é próprio de quem alberga noções do senso comum. Ao mesmo tempo, se a palavra grega "daimon" significava "espírito ou alma de um morto" o articulista precisa dar conta da seguinte questão:

Para os judeus, "da época em que a Bíblia foi escrita", qual a relevância de que, para os gregos, a palavra grega "daimon" significava "espírito ou alma de um morto"? Por acaso, os judeus, "da época em que a Bíblia foi escrita", compartilhavam o vocabulário dos gregos? Mais que isso, também adotavam as crenças gregas?

Conforme o rabino Alan Unterman, no "Dictionary of Jewish Lore and Legend", na concepção judaica, os demônios "foram criados ao anoitecer da sexta-feira da Criação" e Deus, "com o Shabat se aproximando, não teve tempo de dar-lhes corpos, e assim permaneceram espíritos desencarnados".

Nada, nessa explicação, permite estabelecer qualquer nexo com a equivocada ideia de que os demônios eram, "na época em que a Bíblia foi escrita", compreendidos, pelos judeus, como a alma dos mortos.